Não são muitas as oportunidades de testemunhar a história ser
reescrita. Às vezes, na academia, ela até ganha novas leituras à luz da
época e das teorias de quem se propõe a reinterpretá-la. Mas fatos novos
surgirem é coisa rara. Isso torna ainda mais importantes as descobertas
que começam a ser feitas a partir da exumação inédita dos corpos de dom
Pedro I, imperador do Brasil, e suas duas mulheres, dona Leopoldina e
dona Amélia. Fruto do extenso trabalho que envolveu 11 instituições dos
três âmbitos de governo e mobilizou uma equipe liderada pela arqueóloga e
historiadora Valdirene do Carmo Ambiel, os resultados iniciais,
divulgados pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, têm o fascínio de trazer o
passado para os dias de hoje. O interesse despertado pela pesquisa
também é sinal da onda de valorização da história que se nota no mundo
todo, com um público global que parece ávido por saber um pouco mais
sobre o que já foi um dia. Os estudos que a intrincada exumação
incentiva devem ainda dar início a um processo de revisão e
redescobrimento da história nacional. Em breve, teorizam historiadores
ouvidos por ISTOÉ, poderemos até ver algumas modificações nos livros
didáticos brasileiros a partir do que dizem os restos mortais da família
imperial. Entre os personagens examinados, dom Pedro I e a imperatriz
Leopoldina renderam as revelações mais saborosas da pesquisa. Ele, em
especial, por sua importância histórica e por ser o eixo central dos
três exumados, foi quem mereceu mais atenção.
TRABALHO MINUCIOSO
Estudos dos restos mortais do imperador e de suas esposas
permitem rever fatos históricos. Abaixo, dona Amélia mumificada.
Dom Pedro I, feito imperador do Brasil em 12 de outubro de 1822,
morreu e foi enterrado em Portugal em 1834. Ele havia abdicado do trono
brasileiro três anos antes e regressado para a Europa. Seus restos
mortais foram trasladados para o País em 1972, na comemoração dos 150
anos de Independência, sendo abrigados na cripta do Monumento à
Independência, em São Paulo. A abertura do caixão, em fevereiro do ano
passado, foi trabalhosa e demorada (leia mais às págs. 62 e 63). Um
levantamento preliminar do material já permitiu a revisão de algumas
verdades estabelecidas sobre o imperador, além de novas interpretações
de fatos conhecidos.
Por mais de um século, a imagem propagada de dom Pedro I era a de um
homem esguio, forte e alto. Assim ele foi retratado em telas e,
posteriormente, no cinema e na tevê. Por isso, o patriarca da
independência que habita o imaginário brasileiro é o do imperador
montado no cavalo branco, grande e imponente como o pintou Pedro Américo
num dos principais quadros do Museu da Independência. Ou o dom Pedro I
galã, interpretado, em 1972, por Tarcísio Meira no filme “Independência
ou Morte”. A verdade, porém, é que nem porte de galã ele tinha. Segundo
as conclusões iniciais da pesquisa, ele media entre 1,66 m e 1,73 m.
Portanto, era baixinho para os padrões atuais, mas de boa estatura para a
época. A partir da estrutura óssea pode-se inferir que era atlético.
“Bate com os relatos que temos de que ele era um sujeito hiperativo,
sempre envolvido com algum tipo de atividade física”, afirma Mary del
Priore, historiadora e autora de “A Carne e o Sangue”, sobre a família
imperial.
A exumação também revelou que quatro costelas do lado esquerdo
estavam quebradas. Elas são resultado de acidentes em vida porque havia
marcas de cicatrização, processo que cessa após a morte. É um achado que
confirma a documentação existente sobre os acidentes sofridos por dom
Pedro I – um em 1823 e outro em 1829 –, mas que também expande a
discussão sobre as aptidões e o estilo dele para exercer o poder. “De
informações como essa, que confirmam lesões graves decorrentes dos
riscos que o imperador assumiu, podemos inferir que ele não era um homem
talhado para a vida em gabinete”, diz a historiadora Maria Aparecida de
Aquino, da Universidade de São Paulo (USP).
De fato, dom Pedro I era mais talhado para a ação do que para
reflexões. Ao regressar para Portugal, por exemplo, depois da abdicação
do trono no Brasil, fez treinamento na França para melhorar a condição
física como preparação para a guerra que travaria com seu irmão, dom
Miguel, pelo trono português. Negociar uma saída diplomática não era
sequer uma possibilidade. “Todo governante constrói para si a imagem que
deseja ter, e dom Pedro I sempre quis ter fama de cavaleiro destemido e
apaixonado”, diz o historiador Maurício Vicente Ferreira Jr., diretor
do Museu Imperial em Petrópolis. “De certa forma ele conseguiu, tanto
para o bem quanto para o mal.”
FAMÍLIA
A historiadora e arqueóloga Valdirene Ambiel com o crânio de dom Pedro I.
No alto, a segunda mulher, dona Amélia, e acima a primeira, dona Leopoldina
Dona Leopoldina, sua primeira mulher, sentiu na pele o lado passional
de dom Pedro I. Dado a variações de humor, toda energia que ele tão
facilmente depositava nas causas em que acreditava podia rapidamente se
tornar agressividade. A imperatriz narrava em suas cartas a violência
psicológica a que era submetida. Queixava-se do marido à irmã mais
velha, Maria Luisa de Áustria, e a amigas como Maria Graham, sua
educadora na infância. A correspondência mais reveladora, de 8 de
dezembro de 1826, endereçada a Maria Luisa, fala de sofrimento e morte
iminente – a imperatriz morreria três dias depois de ditar esta carta.
“Há quatro anos, minha adorada mana, como a ti tenho escrito, por amor
de um monstro sedutor me vejo reduzida ao estado de maior escravidão e
totalmente esquecida pelo meu adorado Pedro”, desfia. Mais adiante, faz
menção a um “horroroso atentado que será a causa de minha morte”.
Isso ajudou a propagar a história de que dom Pedro I, em um acesso de
raiva, teria dado um pontapé na imperatriz grávida, jogando-a escada
abaixo no palácio na Quinta da Boa Vista, em São Cristovão, no Rio de
Janeiro. O ataque teria quebrado o fêmur da imperatriz, causado seu
último aborto e deflagrado a infecção generalizada que a matou em 1826. A
origem da briga era a relação de dom Pedro I com a amante Domitila de
Castro e Canto Melo, a Marquesa de Santos, a quem ele havia promovido a
dama de companhia da imperatriz. A gota d’água para Leopoldina foi o
fato de dom Pedro resolver assumir publicamente Isabel Maria, a filha
que teve com Domitila, concedendo o título de duquesa de Goiás à menina
de dois anos. Leopoldina o censurou numa carta: “Escolhes entre a esposa
e a amante!” A reação brutal do imperador foi testemunhada pelo Barão
de Mareschal, um agente do governo da Áustria, além de outras duas
pessoas. Segundo Mareschal, ele gritou com a mulher que “lhe tiraria os
cavalos para passeio e outros impropérios”. O austríaco também teria
sido um dos responsáveis por espalhar na corte que dom Pedro espancara a
esposa.
Uma das revelações importantes dos restos exumados de dona Leopoldina
foi a de que não havia sinais de fratura em seu fêmur. Essa informação,
em tese, desmentiria o episódio da Quinta da Boa Vista. “É uma história
de origem pouco conhecida, mas que foi repetida infinitamente e acabou
sendo tratada como verdade”, diz Isabel Lustosa, historiadora da
Fundação Casa de Rui Barbosa e autora do livro “D. Pedro I: Um Herói Sem
Nenhum Caráter”. Na Europa, tias e amigas de dona Leopoldina na Áustria
espalharam a versão sobre a morte da imperatriz pelas cortes do
continente. No Brasil, ela ganhou as páginas de jornais de oposição,
como o republicano “O Repúblico”, que chegou a chamar dom Pedro I de
monstro. Seria uma mancha imensa na história da família imperial, se é
que a história é verdadeira. Mas os ossos intactos deram ânimo aos
descendentes da monarquia. “Ele não era esse monstro”, rebate dom
Antônio João Maria de Orléans e Bragança, 62 anos. “Está provado que não
houve nenhuma agressão”, reforça dom Betrand Maria de Orléans e
Bragança e Wittelsbach, 72 anos, que autorizou as exumações, nas quais
esteve presente um sacerdote. A pesquisadora responsável pelo estudo,
porém, diz não ser possível fazer tal afirmação. “O que dá pra dizer é
que ela não foi vítima de violência com força suficiente para quebrar um
fêmur”, esclarece Valdirene.
Os ossos da imperatriz, no entanto, desfazem a imagem de que ela era
rechonchuda. Quando a jovem Leopoldina chegou ao Brasil, aos 19 anos,
era “pequena, muito branca e com cabelos de um loiro fosco”, segundo
historiadores. Depois de algum tempo no Rio de Janeiro teria engordado,
passando a ser descrita como “baixa e corpulenta”. Uma amiga que a
visitou no Paço Imperial, a Baronesa de Monet, chegou a ser ferina no
relato da silhueta da imperatriz: “Parece talhada numa peça só.” Mas os
exames da ossada sugerem, segundo Valdirene, que ela era uma mulher
magra. Talvez o fato de dona Leopoldina ter tido nove gestações durante
os nove anos em que viveu no Brasil tenha contribuído para essa imagem
de gordinha.
No fim da vida, a depressão tomou conta da imperatriz que, além de
tudo, estava sem dinheiro. Ela contraiu dívidas com comerciantes para
dar conta de suas despesas enquanto dom Pedro I, sovina, regulava até a
despensa da casa e a privava da mesada que seus familiares austríacos
mandavam. Isso poderia explicar porque a imperatriz foi enterrada
praticamente sem joias, apenas com um brinco simples e sem luxo,
supostamente ornado por uma gota de resina, como mostrou a exumação.
“Não dá para dizer qual é o material porque os exames ainda não foram
concluídos”, ressalva a arqueóloga Valdirene. “E ainda que seja resina,
há resinas caríssimas, como o âmbar.” Mesmo assim, surpreende a ausência
de outras joias no caixão. “Onde estão as tiaras, os colares e as
pulseiras que condizem com o status de imperatriz que ela tinha?”,
questiona Maurício Vicente Ferreira Jr., do Museu Imperial de
Petrópolis. “dona Leopoldina foi enterrada com o vestido que usou para a
coroação do marido, é esperado que ele tenha sido desenhado com um
conjuto de joias próprio, que, surpreendetemente, não está presente.”
HOMENAGEM
Os corpos das três figuras históricas estão abrigados na cripta imperial
do Monumento à Independência, no parque da Independência, em São Paulo
As vestimentas do enterro de dom Pedro I também foram motivo de
surpresa para os pesquisadores. Não havia qualquer comenda brasileira
entre as seis encontradas nas roupas militares do imperador. “É preciso
entender o contexto da morte dele”, diz o professor Paulo Jorge
Fernandes, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa. dom Pedro I morreu em Portugal como dom Pedro IV depois
de se sair vitorioso de uma dura batalha contra o irmão tirano, dom
Miguel. O foco estava na pátria-mãe. “É natural que ele ganhasse estas
insígnias, não há desrespeito com a história brasileira”, afirma.
Para entender a divergência, convém separar a vida de dom Pedro I em
três estágios distintos. O primeiro, em Portugal, como primogênito de
dom João VI, o segundo, no Brasil, como imperador, e o terceiro, de
volta a Portugal, como o rei soldado dom Pedro IV. Quando ele voltou a
Portugal, sua vida havia mudado de tal maneira que ele já estava,
inclusive, casado com sua segunda mulher, dona Amélia de Leuchtenberg,
que também foi exumada da cripta do Monumento à Independência. Do caixão
dela veio uma das maiores surpresas de toda operação: seu estado de
conservação. Ela tinha pele, olhos, cílios e cabelo intactos. Em 1982,
quando houve o traslado do seu corpo para o Brasil, foi constatado que
ela estava preservada, mas sua localização na cripta era a pior, por
isso, a expetativa era de grande deterioração.
Curiosamente, dona Amélia queria um velório simples. “Em testamento,
ela pediu, textualmente, para não ser autopsiada ou embalsamada”, afirma
a pesquisadora Cláudia Thomé Witte, especialista na história da segunda
mulher do imperador. Porém, o texto foi lido dois dias depois do
enterro, na Ilha da Madeira, onde dona Amélia morava na época. Quem
preparou seu corpo foi o médico Francisco Antônio Barral, também
responsável por embalsamar a filha dela, Maria Amélia do Brasil, que
morreu de tuberculose aos 21 anos em 1853. Na época, era comum europeus
com a doença rumarem para ilha atrás de ar puro e repouso. Para o corpo
da jovem, a imperatriz havia pedido o melhor método de embalsamamento da
época, pois ela tinha intenção de velá-la por muito tempo – a cerimônia
fúnebre durou impressionantes dois meses. E quando dona Amélia morre,u
Francisco Barral decidiu usar na imperatriz a mesma técnica aplicada na
infanta. O acaso ainda colocou dona Amélia no caixão e sarcófago mais
bem fechados dos três que estão na cripta, o que criou uma situação
ideal de preservação. Quando foi aberto, em 10 de agosto de 2012, o
cheiro de cânfora dominou o ambiente, pois a substância era um dos
principais ingredientes do embalsamamento.
Dona Amélia teve uma vida muito mais calma do que dona Leopoldina.
Dom Pedro I, mais velho e consciente da dificuldade que seus assessores
tiveram para lhe encontrar uma segunda mulher – sua fama de violento
ainda dominava as cortes europeias e ele ouviu oito recusas, da Baviera
ao Piemonte, até ser aceito –, foi amoroso e atencioso com a nova
imperatriz. Para a pesquisadora Cláudia, isso explica o fato de dona
Amélia ter guardado luto por 39 anos, até sua morte. Ela foi enterrada
de preto.
Muitas outras interpretações ainda serão feitas a partir da pesquisa
da arqueóloga Valdirene, apresentada como um projeto de mestrado no
departamento de história da Universidade de São Paulo na semana passada.
Novos dados também surgirão a partir da análise da montanha de
informação acumulada pelas fotos e exames médicos desses três
protagonistas da nossa história. A análise levará anos e ajudará a
compor um perfil mais fiel da família imperial. Há muito trabalho por
fazer e Valdirene Ambiel, 41 anos, pretende se encarregar de pelo menos
parte dele em um doutorado. “São poucas as oportunidades que temos de
mostrar ao grande público, de forma tão clara e direta, que a história
não é uma verdade única e inquestionável, descansando em um livro”, diz a
historiadora Maria Aparecida de Aquino. Estamos diante de uma delas.
Colaboraram: Laura Daudén, Mariana Brugger e Juliana Tiraboschi
Montagem sobre de João Castelano/Ag. Istoé; Divulgação.
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