Cabelo Afro: uma
questão de identidade afrodescendente
Hellen Pabline Leal Conceição[1]
Se eu quero ‘pixaim’, deixa!
Se eu quero enrolado, deixa!
Se eu quero colorido, deixa!
Se eu quero assanhado,
Deixa, deixa, a madeixa balançar.
(Chico César – música:
Respeitem meus cabelos brancos)
Com
o processo colonizador, alguns povos aportaram no Brasil, dentre eles os
Africanos; com essas tribos vieram seus costumes, cores, religiões, e concepções
estéticas como as múltiplas significações dado ao cabelo e seus penteados.
Tribos essas menosprezadas pela posição imposta, em solo que veria a ser
conhecido como Brasil, de negros e escravos. Assim, o cabelo também foi
menosprezado, pois o parâmetro de beleza se configurou balizado pelo modelo
europeu do “belo”.
Com
o passar do tempo lutas de contestação e de libertação podem ser observadas nas
tramas da História, A Revolta dos Malês que aconteceu em Salvador-Bahia no
século XIX é um exemplo disso. Posteriormente, a escravidão teve oficialmente
seu fim, mas a sua obra discriminatória ainda permaneceu; agora a luta se
configura pela busca dos direitos de igualdade racial e social. Tendo em vista
esse contexto, grupos se ergueram para lutar por seus direitos de identidade,
sobretudo a partir da década de 1960, momento efervescente para a História da
humanidade decorrente das manifestações de várias espécies que aconteceram pelo
mundo, levantando bandeiras como a da liberdade de expressão e de corpo. Muitos
desses movimentos trouxeram contribuições significativas para grupos populares
e para a cultura popular, aqui, inserindo-se uma maior valorização da cultura afrodescendente;
“o novo movimento étnico, disseminado aqui (Brasil) nos discursos
norte-americanos de moda e orgulho negro, ganhara força para desassociar o
ideal de beleza negra do ideal branco, que até então dominava soberano,
pregando cabelos lisos, longos e louros”[2], através das discussões
sobre o assunto, pessoas se permitiram expressar seus traços próprios e
originais.
Desde o surgimento da civilização africana, o estilo
do cabelo era usado para indicar o estado civil, a origem da pessoa, a idade, a
religião, a identidade étnica, a riqueza e a posição social. E em certas
culturas, até o sobrenome de uma pessoa podia ser delatado pelo exame do cabelo,
criando deste modo, formas únicas para cada clã. Além disso, um estilo particular
de cabelo poderia ser usado para atrair a pessoa do sexo oposto ou como sinal
de um ritual religioso (FAGUNDES, 2002).
Mesmo
que no Brasil as formas de se utilizar o cabelo não tenham características tão
marcantes quando as Africanas, ainda assim é relevante o ideário e significação
que socialmente se dá ao estar “arrumado”. O cabelo ganha uma atenção especial
nesse ideal de conduta social e o que podemos observar é o papel importante que
a sociedade possui na significação dada à cultura afrodescendente, o que acaba
desembocado no cabelo afro, um dos maiores símbolos de identificação cultural.
O
cabelo é um marcante indício de procedência étnica, é um dos principais
elementos biotipológicos na construção da pessoa na cultura. O negro quando
assume o seu cabelo de negro assume também o seu papel na sociedade como uma pessoa
negra. E ser negro no Brasil e no mundo, convenhamos, é ainda um duro caminho
trilhado por milhares de afro descendentes (apud LODY, R. 2004, p.125).
A
escola, nesse contexto, apresentasse como um ambiente importante para se
analisar a formação da identidade que começa a se estruturar na infância e que
tem na adolescência sua fase mais marcante. Fica evidente que é no espaço
escolar que infelizmente acontecem os mais diversos tipos de preconceitos, dentre
eles, o preconceito racial é nítido. “No Brasil já existe a lei de nº 10.639,
de nove de janeiro de 2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a
Obrigatoriedade da temática ‘História e Cultural Afro-Brasileira’”[3], porém essa lei é pouco
exercitada na escola pública, já que coloca a escola “como instituição social
responsável pela transmissão e socialização do conhecimento e da cultura”,
tratada na maior parte das vezes apenas de forma tangencial em sala de aula,
não cumprindo efetivamente com as propostas norteadoras que são apresentadas
nos PCN’s.
A ideologia
eurocêntrica ainda está enraizada na postura pedagógica de muitos educadores,
sendo da mesma forma transmitida para seus alunos, submetidos ás crenças e aos
valores da cultura branca dominante, na interiorização de estereótipos de forma
inconsciente (GOMES, 2002).
Podemos encontrar uma
dificuldade ao lidar com esse tema diante da própria postura dos educadores em
relação a essa temática, os educadores não se aceitam com o cabelo
afrodescendente. Encontramo-nos aqui em um impasse, como eles poderão
transmitir conceitos da etnia negra, as representações negras da sociedade, os seus
valores, se eles mesmos não expressão uma auto aceitação, sobretudo quando o
assunto é seu cabelo naturalmente crespo? Essas questões são presente e
significativas, e muitas vezes não damos a devida atenção. Construímo-nos por
meio do corpo, corpo esse que é construído biológico e culturalmente na
História. Esse paralelo, o corpo natural e o corpo simbólico, nos constitui
enquanto indivíduos. Por isso não podemos esquecer que essas duas áreas
convivem simultaneamente, nossas funções e comportamentos biológicos, como o
sono, fome, o desejo sexual, são culturalmente construídas e significados. E
foi essa comparação dos sinais do corpo negro (tipo de cabelo, cor da pele,
formato do nariz, boca) com os traços brancos europeus, naquele contexto
colonial, que serviu como argumento para uma padronização de beleza e fealdade
que nos acompanha até hoje. “O cabelo tem sido um dos principais símbolos
utilizados nesse processo, pois desde a escravidão tem sido usado como um dos
elementos definidores do lugar do sujeito dentro do sistema de classificação
racial brasileiro”[4].
A discussão desse padrão culturalmente construído é questionada nas escolas de
forma substancial?
A experiência do negro
com o cabelo começa muito cedo, engana-se quem pensa que as primeiras
experiências de rejeição do cabelo afro iniciam-se com os processos de
alisamentos. É muito comum, na infância, os pais fazerem tranças para “domar” o
cabelo. Desde tenra idade, a criança é ensinada que os cachos volumosos
precisam ser contidos, já que destoa tanto do padrão liso rende à cabeça. Muito
comum, em seguida, a tentativa de contê-los por meio de instrumentos como
secador e prancha de alisar. O processo de alisamento, depois de certa idade,
principalmente em torno da pré-adolescência, se torna constante na vida de
muitas garotas como tentativa de “ajeitar” o cabelo. E o ditado “para ser
bonita, tem que sofrer” é internalizado, e aceito como uma condição que
precisam suportar para alcançar a satisfação estética. Muitas empresas tiram
proveito disso na criação de fórmulas químicas, fazendo propagandas milagrosas
em que o cabelo crespo é transformado em liso. É nessa perspectiva empresarial
de um cabelo dito como perfeito, o cabelo liso, que o lucro é cada vez maior no
emprego da produção de alisantes.
Teóricas feministas que
discutem questões raciais, fontes interessante para tomar conhecimento da
discussão, inclusive para a própria reflexão do educador, debatem sobre as questões
de gênero e cor, e podem ser facilmente conhecidas por meio de redes social
como o YouTube. Cito como importante ícone desse debate Chimamanda Ngozi
Adichie que nasceu em 15 de setembro de 1997 em Enugu, Nigéria; foi o quinto de
seis filhos. Seu pai trabalhou na Universidade da Nigéria, e foi o primeiro
professor de estatística da Nigéria. Sua mãe por sua vez, foi a primeira
secretária do sexo feminino a trabalhar na mesma instituição. Chimamanda
concluiu seus estudos secundários na escola da Universidade. Estudou medicina
de farmácia por um ano. Aos 19, Adichie partiu para os Estados Unidos para
assim concluiu seus estudos diante de novas oportunidades educacionais. Ganhou
uma bolsa para estudar comunicação na Universidade de Drexel, Filadélfia.
Seguiu estudando licenciatura em comunicação e ciências políticas, fez mestrado
em estudos africanos, e depois de 2001, completou seu mestrado em escrita
criativa. Em 2011-2012 foi premiada com bolsa de estudos pelo Instituto
Readcliffe de Estudos Avançados, da Universidade de Harvard.
Escritora de muitos
romances publicados tem como títulos Hibisco Roxo, de 2003, que mostra através
da protagonista como a religiosidade extremamente “branca” e católica de seu
pai, um rico industrial, inferniza e destrói lentamente a vida de toda uma
família; Americanah, de 2013, Adachie parte de uma história de amor para
debater questões presentes e universais como imigração, preconceito racial e
desigualdade de gênero; já Meio Sol Amarelo, de 2006, enfeixa várias pontas do
conflito que matou milhares de pessoas, A Guerra de Biafra, em virtude da
guerra, da fome e da doença. Como uma das publicações mais recentes temos
Sejamos todos Feministas, de 2014, que nada mais é do que a versão impressa da
Palestra que ela concedeu a uma tv americana, cujo vídeo está facilmente disponível
no YouTube; nesse ensaio, Adichie parte de sua experiência pessoas de mulher e
nigeriana para pensar o que ainda precisa ser feito de modo que as meninas não
anulem mais sua personalidade para serem como esperam que sejam, e os meninos
se sintam livres para crescer sem ter que se enquadrar nos estereótipos de
masculinidade.
Hoje
já é possível ver na mídia uma maior atenção ao cabelo crespo. Já é possível
ver o negro representado em propagandas, produtos capilares próprios para
cabelos crespos, e a internet se mostra como um importante veículo de discussão
sobre questões de gênero, africanidade e identidade. No YouTube podemos
encontrar vários Vlog (canais que depositam vídeos sobre determinados assuntos
ou assuntos variados), cujas administradoras se reconhecem como “cacheadas”.
Nesses canais, é depositado vídeos que trabalham várias questões sobre questões
capilares, como transição capilar, auto aceitação, dicas de hidratação, entre outros
assuntos. Este se mostra como um meio interessante de valorizar a estética
negra, tendo em vista que os vídeos estão disponíveis para serem visualizados
por qualquer pessoa. Essas “cacheadas” trabalham bem a valorização dos cachos e
crespos, se transformando em meios preciosos de informação, pois “muitas vezes
as pessoas são preconceituosas por causa da desinformação. Elas precisam ser
reeducadas”.
Nesse
contexto, o cabelo e a cor da pele podem sair do lugar da inferioridade e
ocupar o lugar da beleza negra, assumindo uma significação política. O cabelo,
os significados do corpo negro são históricos, e da mesma forma que são
construídos, suas definições podem ser questionadas. O corpo negro, e junto com
ele toda a cultura que o representa, vem ganhando lugar na contemporaneidade,
mesmo que de forma ainda tímida, pelas leis, mídia televisiva, propagandas e
redes sociais. O mundo conectado permitiu uma maior informação sobre a questão,
permitindo também um novo olhar, um olhar de valoração aos traços de uma
cultura tão rica e bela, como é a cultura africana.
REFERÊNCIAS
BRASIL,
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros
Curriculares Nacionais: História e Geografia. Brasília, MEC/SEF, 1997.
BURKE,
Peter. A Escrita da História: Novas
Perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.
COUTINHO, Cassi Ladi Reis. A estética
dos cabelos crespos em Salvador. 2010. 107 p. Dissertação (Mestrado) –
Departamento de Ciências Humanas, Universidade do Estado da Bahia, Bahia, 2010.
FAGUNDES,
Raphaela M.
Penteado Afro: Cultura, Identidade
e Profissão.
FÉLIX.
Sayara de Brito. Cabelo Bom. Cabelo Ruim: a construção da identidade
afrodescendente na sala de aula. In: Revista
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GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo
crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?. Acesso:
< http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n21/n21a03>
SCOTT,
Joan. Os usos e abusos do gênero.
2012.
SOIHET,
Rachel. PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da História das Mulheres e
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Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, 2007.
QUEIROZ,
Teresinha de Jesus Mesquita. Mulheres Plurais. In: Do Singular ao Plural. Recife: Edições Bagaço, 2006.
QUINTÃO, Adriana Maria Penna. O que
ela tem na cabeça? Um estudo sobre o cabelo como
performance identitária . 2013. 196 f. Acesso:
< http://www.uff.br/ppga/wp-content/uploads/2013/10/O-QUE-ELA-TEM-NA-CABECA_-Um-estudo-sobre-o-cabelo-como-performance-identitaria.pdf >
[1]
Graduanda em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do
Piauí-UFPI. Artigo feito como atividade da disciplina Cultura Afro-Brasileira. Bolsista
do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência-PIBID. Teresina-PI,
2015. Email: pablinecx@hotmail.com
[3] FÉLIX. Sayara de Brito. Cabelo
Bom. Cabelo Ruim: a construção da
identidade afrodescendente na sala de aula.
[4] GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo
crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?
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