sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O Negro na iconografia: retratos do Brasil escravocrata por Debret e Rugendas



 Por Anne Caroline Santos Nunes[1]


As imagens correspondem a uma forma de registrar a realidade, por meio delas pode-se documentar o homem, seu cotidiano, a paisagem e as transformações do espaço natural ou urbano. Durante o período colonial e até início do Império cabia aos desenhistas e pintores retratarem o dia-a-dia da sociedade em que viviam, através de litrogravuras que representavam o seu tempo. O Brasil oitocentista foi fartamente retratado por grandes pintores e desenhistas, como o francês Jean-Baptiste Debret e o alemão Johann Moritz Rugendas. Do homem à botânica, das etnias que construíam a Colônia aos animais que habitavam as suas florestas, tudo foi retratado por estes renomados desenhistas que viveram no Brasil durante alguns anos e publicaram seus exemplares de Voyage Pittoresque et Historique au Brésil e  Voyage pittoresque dans le Brésil, respectivamente. O presente artigo objetiva analisar o Brasil escravocrata durante o século XIX através dos quadros criados pelos artistas Debret e Rugendas e por meio disso, compreender aspectos da escravidão sob a ótica dos costumes, cotidiano e cultura observando a representação do negro na produção desses artistas neoclássicos.

Palavras-chave: Iconografia. Sociedade. Escravidão. Artistas-Viajantes.


Introdução

            Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas estão entre os mais importantes artistas a percorrer o Brasil no século XIX. Eles lançaram álbuns fundamentais sobre os costumes e os habitantes do país, que ficaram conhecidos como as Viagens Pitorescas. Seus quadros apresentam situações cotidianas da vida no Brasil oitocentista e além disso, retratam a etnografia dos povos indígenas e negros.
Jean-Baptiste Debret (1768-1848), pintor e desenhista nascido em Paris, integrou a Missão Artística Francesa, chegando ao Brasil em 1816, ao lado do arquiteto Grandjean de Montigny. A missão aconteceu por solicitação de dom João VI, sendo planejada por António Araújo e Azevedo, o conde da Barca. O objetivo da missão era, entre outros, organizar a criação da Academia de Belas Artes. Durante a época que esteve no Brasil, de 1816 a 1931, Debret, com os seus traços do neoclassicismo, retratou com detalhes históricos únicos o Brasil de então. Da corte portuguesa no país à corte instalada pelo proclamador da independência, dom Pedro I, nada passou despercebido na obra de Debret.
Quando retornou à França, publicou, entre 1834 e 1839, “Voyage Pittoresque et Historique au Brésil” (Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil), que documentava os aspectos do homem, da natureza e da sociedade brasileira. Não se limitou à sua excepcional habilidade como desenhista, também reunindo notas e organizando um vasto material sobre aspectos econômicos, políticos, sociais e geográficos. Como não se contentou em ser apenas um pintor oficial, Debret passou, paulatinamente, a registrar a vida nas ruas e nas casas da cidade do Rio de Janeiro. Percebendo que só as imagens não eram suficientes para explicar o que via, teve a decisão de escrever textos pra acompanharem as litografias.
O desenhista Johann Moritz Rugendas (1802-1858), nascido em Augsburg, chegou bem jovem ao Brasil, em 1821, vindo como membro da expedição do Barão de Langsdorff, cientista e diplomata russo.
No Brasil, Rugendas logo deixou a expedição e passou a viajar por sua própria conta, percorrendo de 1822 a 1825 várias partes do país, dedicando-se a retratar os mais variados aspectos da vida da nação que se formava depois da independência em relação a Portugal. Rugendas registra justamente o momento de transição entre o Brasil colônia e o Brasil nação independente. Os registros de Rugendas do cotidiano brasileiro formaram uma coletânea de cem trabalhos publicada em Paris, em 1835, sob o título de “Voyage Pittoresque au Brésil” (Viagem Pitoresca ao Brasil).
Em sua primeira passagem pelo Brasil, Rugendas pintou mais de 500 telas com motivos relacionados ao que observou em sua viagem. Retratou os índios, os negros, os brancos (na sua maioria, de origem portuguesa), a paisagem e os costumes locais. Sua obra tem enorme importância para o conhecimento da história do Brasil na época que ele o visitou, por retratar ruas, casas, igrejas e os motivos acima citados. Para o uso de toda essa documentação histórica seria imprescindível que o Brasil possuísse sua obra completa, que encontra-se espalhada pelo mundo em museus e coleções particulares, longe do acesso mais amplo do público.
As obras dos dois artistas diferem em alguns aspectos, uma vez que Rugendas faz um registro mais científico, com ilustrações de paisagens, aspectos da natureza, observações dos escravos, como também demonstra a fauna, a flora, os tipos físicos e a visão da cidade do Rio de Janeiro; enquanto Debret gostava de pintar a sociedade e seus costumes, a arquitetura, os hábitos diários da povo.
            É corrente que as obras de Jean Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas constituem importantes fontes e objetos de estudo para a produção historiográfica. É necessário identificar, a partir da iconografia e das descrições textuais que acompanham as estampas, o olhar dos artistas viajantes sobre o Brasil escravocrata, não tendo a preocupação central de realizar uma verificação da fidelidade do artista em relação a um suposto real, mas de perceber essas imagens e textos prioritariamente enquanto construções discursivas[2].
           
O olhar de Rugendas e Debret sobre a escravidão negra no Brasil

            Rugendas e Debret vieram ao Brasil na primeira metade do século XIX, momento em que em que a nação deixava de ser colônia para se tornar império. As estruturas internas estavam baseadas na produção agrícola voltada para a exportação e no trabalho escravo. Neste momento, há também uma efervescência cultural proporcionada pelas missões artísticas estrangeiras que chegaram ao país a fim de desenvolverem aqui atividades culturais. Economicamente, o Brasil colônia era dependente economicamente da Inglaterra, assim como a metrópole portuguesa, de quem herdou tal condição. Assim, mantinha relações comerciais desfavoráveis com a Inglaterra, vendendo-lhe matéria-prima a baixos preços e comprando seus manufaturados a preços exultantes. Quanto à sociedade dessa época, pode ser caracterizada como patriarcal e escravista.
            O escravo tornou-se a mão-de-obra fundamental nas plantações de cana-de-açúcar, de tabaco e de algodão, nos engenhos, e mais tarde, nas vilas e cidades, nas minas e nas fazendas de gado. Além de mão-de-obra, o escravo representava riqueza: era uma mercadoria, que, em caso de necessidade, podia ser vendida, alugada, doada e leiloada. O escravo era visto na sociedade colonial também como símbolo do poder e do prestígio dos senhores, cuja importância social era avalizada pelo número de escravos que possuíam.
A escravidão negra foi implantada durante o século XVII e se intensificou entre os anos de 1700 e 1822, sobretudo pelo grande crescimento do tráfico negreiro. O comércio de escravos entre a África e o Brasil tornou-se um negócio muito lucrativo. O apogeu do afluxo de escravos negros pode ser situado entre 1701 e 1810, quando 1.891.400 africanos foram desembarcados nos portos coloniais.
Nem mesmo com a independência política do Brasil, em 1822, e com a adoção das idéias liberais pelas classes dominantes o tráfico de escravos e a escravidão foram abalados. Neste momento, os senhores só pensavam em se libertar do domínio português que os impedia de expandir livremente seus negócios. Ainda era interessante para eles preservar as estruturas sociais, políticas e econômicas vigentes.
            Rugendas e Debret dedicaram ao negro a quase totalidade de seus quadros. A simples observação deles faz-se perceber o papel desempenhado pelos negros na sociedade da época.
Este elemento representava a principal força de trabalho em qualquer tipo de atividade.
Segue abaixo uma relação de algumas das pranchas desses autores, com as respectivas explicações sobre suas representações. Elas são apenas algumas diante da extensa obra de ambos e servem como forma de interpretar a escravidão, o cotidiano dos negros, seus traços, cultura e costumes.



                Não existem registros precisos dos primeiros escravos negros que chegaram ao Brasil. A tese mais aceita é a de que em 1538, Jorge Lopes Bixorda, arrendatário de pau-brasil, teria traficado para a Bahia os primeiros escravos africanos.Eles eram capturados nas terras onde viviam na África e trazidos à força para a América, em grandes navios, em condições miseráveis e desumanas. Muitos morriam durante a viagem através do oceano Atlântico, vítimas de doenças, de maus tratos e da fome.
Os escravos que sobreviviam à travessia, ao chegar ao Brasil, eram logo separados do seu grupo lingüístico e cultural africano e misturados com outros de tribos diversas para que não pudessem se comunicar. Seu papel de agora em diante seria servir de mão-de-obra para seus senhores, fazendo tudo o que lhes ordenassem, sob pena de castigos violentos.
Além de terem sido trazidos de sua terra natal, de não terem nenhum direito, os escravos tinham que conviver com a violência e a humilhação em seu dia-a-dia.
             O olhar de Rugendas sobre o tráfico de escravos é retratado na sua tela “Nègres a Fond de Calle”, segundo Rugendas (1940, p. 24)
Embarcam-se, anualmente, cerca de 120 000 negros na costa da África, unicamente para o Brasil, e é raro chegarem ao destino mais de 80 a 90 mil. Perde-se, portanto, cerca de um terço durante a travessia de dois meses e meio a três meses. Ao chegarem à fazenda, confia-se o escravo aos cuidados de um ou outro mais velho e já batizado. Este o recebe na sua cabana e procura fazê-lo, pouco a pouco, participar de suas ocupações domésticas; ensina-lhe também algumas palavras em português. E somente quando o novo escravo se acha completamente refeito das consequências da travessia, que se começa a fazê-lo tomar parte nos trabalhos agrícolas.

Em relação ao trabalho escravo nas plantações de café, Debret representou em algumas telas o cotidiano das tarefas nos cafezais, tal como os castigos praticados pelos feitores. Exemplificando isso há o quadro “Comboio de café seguindo para a cidade”, demonstrado a seguir.




                O café, produto conhecido no Brasil neste período há uns 60 anos, era algo lucrativo na província do Rio de Janeiro. Para uma produção de qualidade, era necessário um negro para cada mil pés de café. Suas tarefas eram tirar as ervas daninhas e limpar o tronco do musgo que nele crescia espontaneamente. Depois de colhido, socado e separado, o café era guardado em armazéns, ao abrigo da luz e da umidade.
Quanto ao transporte, era feito por escravos que carregavam sacos de 128 libras, com dois alqueires. Na tela, um capataz entusiasta canta e anima os carregadores. O primeiro é o porta-bandeira, que se distingue dos demais por um lenço amarrado a uma vara. A coluna/fila é guiada pelo capataz que se mune de um chifre de boi ou carneiro, como amuleto que alimenta a superstição e dá força aos negros transportadores.
            Em relação à cultura dos negros, Debret e Rugendas representaram festas, aspectos religiosos e práticas como a dança, capoeira e música.


                   Rugendas retratou a cultura dos negros e dos índios como poucos. Esta tela mostra a luta de capoeira utilizada pelos negros para sua defesa. Entretanto, esta luta tinha de ser disfarçada como dança para que as autoridades não os reprimissem. A maioria dos que a praticavam, se encontrava trabalhando nos centros urbanos, vendendo sua mão-de-obra e materiais produzidos nas fazendas de seus senhores. Esse quadro nos sugere uma forma de resistência dos negros à escravidão através da cultura. Segundo Freyre (2006, p.150-151),
Às vezes havia negro navalhado; moleque com os intestinos de fora que a rede branca vinha buscar. Porque as procissões com banda de música tornaram-se o ponto de encontro dos capoeiras, curioso tipo de negro ou mulato de cidade, correspondendo ao dos capangas e cabras dos engenhos. O forte da capoeira era a navalha ou faca de ponta sua gabolice, a do pixaim penteado em trunfa, a sandália na ponta do pé quase de dançarino e a do modo desengonçado de andar. A capoeira incluía, além disso, uma série de passos difíceis e de agilidades quase incríveis de corpo, nas quais o malandro da rua se iniciava como que maçonicamente. Os capoeiras correspondem a uma figura tão típica das cidades do Brasil quanto a do capanga ou a do cabra, dos engenhos das fazendas.

Com isso, percebe-se mais uma vez, que nem todos os negros trabalhavam no campo, como mostra a tela anterior, e que sua presença nas cidades era grande, assim como no campo. A capoeira fez parte de uma herança cultural trazida da África e que prevaleceu nas práticas culturais dos escravos, sendo incorporada ao decorrer dos séculos à cultura brasileira.




O catolicismo como religião dominante, imposta pela catequização e ideal colonizador da igreja contrarreformista, não cedia espaço à cultura do dominado para manifestar atos, mitos e ritos de origem. Sendo assim, os africanos e os seus descendentes do Brasil encontraram meios de sobrevivência religiosa e de resistência cultural, incorporando à sua religião imagens de cultos católicos de forma sincrética.
            Os festejos em louvor a Nossa Senhora do Rosário em grandes cidades brasileiras, até as cidades de menor escala, [...] “tem sua ascendência na cultura afrobrasileira e na história de resistência dessa população. Os valores próprios do sincretismo religioso, da oralidade, da culinária, da musicalidade são os elos próprios das populações escravas negras” [...] (MINAS GERAIS, 2012, p. 3). Sobre a perspectiva de Rugendas (1940, p.32),

 No mês de maio, os negros celebram a festa de Nossa Senhora do Rosário. É nesta ocasião que têm por costume eleger o Rei do Congo, o que acontece quando aquele que estava revestido dessa dignidade morreu durante o ano, quando um motivo qualquer o obrigou a demitir-se, ou ainda, o que ocorre às vezes, quando foi destronado pelos seus súditos. Permitem aos negros do Congo eleger um rei e uma rainha de sua nação, e essa escolha tanto pode recair num escravo como num negro livre. Este príncipe tem, sobre seus súditos, uma espécie de poder que os brancos ridicularizam e que se manifesta principalmente nas festas religiosas dos negros como, por exemplo, na de sua padroeira Nossa Senhora do Rosário. Às onze horas fui à igreja com o capelão e, não demorou muito, vimos chegar uma multidão de negros, ao som dos tambores. Homens e mulheres usavam vestimentas das mais vivas cores que haviam encontrado. Quando se aproximaram, distinguimos o Rei, a Rainha, o Ministro de Estado. Os primeiros usavam coroas de papelão, recobertas de papel dourado... As despesas da cerimônia deviam ser pagas pelos negros, por isso haviam colocado na igreja uma pequena mesa à qual estavam sentados o tesoureiro e outros membros da irmandade negra do Rosário, os quais recebiam os donativos dos assistentes dentro de uma espécie de cofre.


            Outro exemplo de representação da escravidão, feita pelos artistas-viajantes é referente às habitações que os escravos residiam. As senzalas eram espaços sadomasoquistas[3], divididos em dois ou três compartimentos (sala e quarto). Construídas precariamente, nas senzalas os negros dormiam em esteiras de taboa e cozinhavam em fogão de forquilha usando o trempe. Essas habitações também foram retratadas por Debret e Rugendas e através disso mostravam “habitações de tamanho diminuto, onde concentravam-se grande quantidade de escravos, localizando-se nas zonas mais precárias das cidades”. (FREYRE, 2006, p.269).


As senzalas representavam espaços de convivência, situadas próximo às casas-grandes ou chácaras para que os escravos estivessem sempre aos arredores dos senhores. Com a urbanização as senzalas foram substituídas por mucambos, que passaram a ter uma estrutura de taipa adaptada às condições da cidade. De acordo com Rugendas, em Viagem Pitorecas ao Brasil, “as cabanas dos escravos contêm mais ou menos tudo que neste clima pode ser considerado necessário. Por outro lado, eles possuem galinhas, porcos, às vezes mesmo um cavalo ou uma besta, que alugam com vantagem porque a alimentação nada lhes custa” (1940, p.37).
Quanto aos castigos sofridos pelos escravos, foram constantemente retratados na obra de Debret.


                O quadro retrata o açoite, prática de violência comum no período da escravidão. Observa-se o ambiente urbano, com grande quantidade de espectadores, membros da guarda municipal, além de outros escravos prestes a receber o mesmo castigo. No quadro, o carrasco é hábil ao arranhar a epiderme ao chicotear. Ele mesmo fabrica o chicote que é feito de 7 ou 8 tiras de couro secas e retorcidas. Para que o efeito fosse melhor era necessário trocá-lo, pois o sangue o amolecia e ele não produzia o efeito esperado. Do lado esquerdo do quadro, se encontram os condenados. Os escravos dos extremos estão cabisbaixos, pois um dos dois será o próximo. Do lado direito, deitados no chão, estão os negros que acabaram de ser executados, deitados para que não haja hemorragia e com fraldas sob os ferimentos para que as moscas não pousem e infeccione o ferimento.
Quanto ao executado, pode-se perceber seu caráter enérgico pois, apesar da dor que sente, tem forças para ficar na ponta do pé a cada golpe. Alguns condenados se mostram de caráter forte, pois sofrem toda a pena em silêncio.
O açoite era aplicado a todo escravo negro culpado de falta grave: deserção, roubo, ferimentos recebidos em brigas, etc. O senhor que requer a aplicação da pena obtém uma autorização do intendente da polícia, que lhe dá o direito de determinar o número de chibatadas, de 50 a 200, que podem ser administradas em 2 dias. O horário mais comum era entre nove e dez da manhã nas praça públicas, onde se localizavam os pelourinhos. Os castigados podiam ser devolvidos à prisão se o seu dono pagasse dois vinténs por dia com intuito de puni-lo ou esperar para ser vendido. Após sair do açoite, o escravo era submetido à lavagem das chagas com vinagre e pimenta para que não infeccionasse.
Diferentemente era tratado o negro que fosse descoberto chefe de quilombo. Este saia da cadeia carregando um cartaz escrito “chefe de quilombo”. Sua pena era de 300 chibatadas, divididas de 30 em 30, em diferentes praças públicas, para servir de exemplo e banir a vontade deles fugirem para quilombos. As execuções provocavam hemorragias, levando o negro a sucumbir em meio a ataques de tétano.
            Em relação a vida urbana, Rugendas e Debret retrataram a vida dos negros escravizados, seja a partir do trabalho, castigos, cultura ou situações cotidianas. A seguir, alguns exemplos de tela que retratam os escravos no ambiente urbano.


Nesta tela pode-se ver a movimentação do comércio no centro do Rio de Janeiro. Negros fazendo trabalhos diversos como a arte da marcenaria, da sapataria, da alfaiataria e, até mesmo, trabalhando como marinheiros e com vendas no geral.
Esses negros que iam para as cidades, eram obrigados a vender sua mão-de obra ou produtos das fazendas para em troca receberem dinheiro. Entretanto, esse dinheiro se destinava ao seu senhor, tendo o escravo uma pequena parcela de participação nesse capital. Ou ainda, muitos tinham a liberdade de vender sua mão-de-obra na cidade, na condição de pagar uma certa quantia em dinheiro para seu senhor. Era com essa renda que muitas vezes, poucos deles conseguiam comprar sua alforria.
              

            Debret, ao escrever sobre essa tela, relatou que esses curandeiros ficavam nas periferias das cidades, sendo solicitados por escravos forros, libertos ou foragidos, pois, os escravos das fazendas, quando enfermos, eram tratados pelo médico da mesmo.  Debret os considerava como charlatões, desprezando o conhecimento milenar e a cultura dos mesmos.
            Debret espantou-se com o número considerável de pequenas fábricas de sapatos no Rio de Janeiro, a tela seguir representa um desses estabelecimentos, tão comuns no Rio de Janeiro urbanizado. Na loja representada, um sapateiro português castiga o seu escravo com a palmatória, enquanto sua mulher, uma mulata, o espreita com prazer, ao mesmo tempo em que amamenta um bebê. À direita, outros dois escravos prosseguem, amedrontados, no serviço.


O primeiro aspecto que chama a atenção ao observar a cena exposta na tela é a extrema facilidade na qual consegue-se identificar os livres e os cativos. Isto se dá quase que única e exclusivamente pela cor da pele. De forma secundária, essa diferenciação é feita também pelo fato de que alguns negros servem, é o caso da negra que abana o casal, e de que os outros estão à disposição dos brancos para atender a qualquer situação ou solicitação que porventura surja.
A farta mesa devorada pelo casal é um ponto estratégico para refletir a desigualdade social existente na época. Segundo Debret, em sua obra “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, um jantar na casa de um pequeno ou médio negociante, como o que se vê na cena, era constituído de

uma sopa de pão e caldo gordo, chamado caldo de substância, porque é feita com um enorme pedaço de carne de vaca, salsichas, tomates, toucinho, couves, imensos rabanetes brancos com suas folhas, chamados impropriamente nabos etc., tudo bem cozido(...). Finalmente, o jantar se completa com uma salada inteiramente recoberta de enormes fatias de cebola crua e de azeitonas escuras e rançosas (tão apreciadas em Portugal, de onde vêm, assim como o azeite de tempero que tem o mesmo gosto detestável). A esses pratos, sucedem, como sobremesa, o doce-de-arroz frio, excessivamente salpicado de canela, o queijo de Minas (...). Se por um lado, a comilança e a farta mesa de jantar do negociante se repetia a cada dia, do outro lado, compunham a refeição dos negros cativos apenas (...) dois punhados de farinha seca umedecidos na boca pelo suco de algumas bananas ou laranjas. (...) é costume, durante o tête-à-tête (conversa a parte entre duas pessoas) de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mulher se distraia com os negrinhos que substituem os doguezinhos (cachorros), hoje quase completamente desaparecidos na Europa.” (DEBRET, 1839)

Por fim, uma vez destacados os principais pontos da tela, pode-se chegar a conclusão de que além de patriarcal e escravista, os pilares da sociedade brasileira colonial estavam fundamentados no quesito desigualdade, e assim, nos cabe a importantíssima consciência histórica de que esta mesma configuração de sociedade, deixou enraizado este mal ainda não totalmente superado nos dias atuais. Se a cena de "Um jantar brasileiro" pintada por Debret, revela um aspecto que cotidianamente se repetia nos lares daquele período, Brasil a fora, aonde dois ou três saciavam a fome sentados a farta mesa servida por quatro, cinco ou seis famintos, não é difícil compreender porque que no Brasil atual as diferenças sociais são tão ruidosas que a sensação que se tem é de que numa reprodução contínua da tela de Debret, em proporções muito maiores, o Brasil nada mais é política, cultural e economicamente falando, que dois, três ou quatro sentados à fartíssima mesa, servida por um número incontáveis de famintos.
As obras de Debret e Rugendas retratam a completa atrocidade que representou o regime escravista através dos maus-tratos, desigualdade e péssimas condições de vida dos negros. Porém, apesar de todas as mazelas, mostram que o negro resistiu à escravidão por meio da cultura e do comportamento festivo, alegre e que tornou-se presente na formação do povo brasileiro, contrapondo-se a frieza portuguesa (típico dos europeus) e a timidez indígena.
           


Considerações finais

Com certeza, a história contada através da iconografia nos traz muito sobre os costumes e o modo de vida, tanto dos escravos quanto da aristocracia brasileira do século XIX. Os pintores, também conhecidos como repórteres da época, relatam festas da corte, religiosas e pagãs e também apresentam o cotidiano com toda sua complexidade e singularidade. Desta maneira, ensinam que a obra de arte, seja ela qual for, é um documento bem como interpretado segundo os valores e a moral da época em que foi produzida O que pode-se concluir é que ambos retrataram as formas, a beleza, a cultura, o trabalho entre outras categorias, a seu modo e que cada um contribuiu à sua maneira para a preservação da memória e história do Brasil.
            Debret e Rugendas em sua perspectiva de artistas-viajantes mostraram através de suas obras a escravidão no Brasil, ainda que a produção iconográfica possa partir de um olhar subjetivo do pintor, documentaram situações cotidianas, uma vez que a única de forma de expor a “realidade” ou a representação dela sob a perspectiva visual se dava através de pinturas, desenhos ou litrogravuras.
A escravidão foi retratada desde o tráfico negreiro, desembarque, trabalho no engenho, nas cidades, dança, religiosidade, moradias, violência, festividades, dentre outros aspectos. O negro aparece nessas obras com uma condição de protagonista, esvaindo-se a ideia até então da representação apenas da corte ou da nobreza pelos artistas.
A Missão Artística Francesa muda essa visão e insere o quadro social nas obras dos artistas, confrontando o classicismo vigente. Essas imagens são importantes subsídios para a historiografia, principalmente aquela que se destina ao estudo da formação do povo brasileiro, centrando-se na figura do branco, negro e índio, uma vez que Debret e Rugendas pintaram essa “tríade” e, além disso, analisaram com observações importantíssimas em textos (publicando em seus “Voyages pittoresque”), constituindo a interpretação visual e textual desses artistas-viajantes sobre o Brasil oitocentista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BANDEIRA, Júlio. Debret e o Brasil: obra completa 1816-1831/Júlio Bandeira, Pedro Corrêa do Lago. Rio de Janeiro: Capivara Ed., 2008.

BOGHICI, Jean (org.). Missão Artística Francesa e pintores viajantes: França-Brasil no século XIX. Apresentação de Michel Oyharcabal. Rio de Janeiro: Instituto Cultural Brasil-França, 1990.

CAMPOS, Raymundo Carlos Bandeira. Debret: Cenas de uma sociedade escravista. São Paulo: Atual, 2001.

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Tradução: Sergio Milliet; apresentação: Lygia da Fonseca F. da Cunha. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Limitada / São Paulo: Editora da USP, 1989.

DEBRET, Jean Baptiste. O Brasil de Debret. Coleção Imagens do Brasil, vol. II. Belo
Horizonte: Vila Rica Editoras Reunidas Limitada, 1993.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 16ª Ed, 2006.

MINAS GERAIS. Festa do Rosário dos Homens Pretos de Chapada do Norte. Belo Horizonte: IEPHA, 2012. Cadernos Temáticos.
RUGENDAS, J. M. Viagem Pitoresca Através do Brasil. ed: 2. São Paulo: Martins, 1940





[1] Graduanda do sétimo período do curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).
*Artigo realizado para avaliação final da disciplina de Cultura Afro-brasileira sob orientação da professora Maryneves Saraiva de Arêa Leão. Produzido na cidade de Teresina – PI em 26 de junho de 2015.
[2] CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988, p.23.
[3] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal. São Paulo? Global: 49ª Ed, 2004.

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